Por Diana Magalhães
Parei em uma cafeteria para buscar um tempo a fim de organizar as palavras que saltitam em minha mente. Quis escolher bem um lugar que me trouxesse um pouco de paz, silêncio e quietude próprios da vida de um adulto sem crianças ao redor. O pai me dera algumas horas nessa manhã de sábado para um período de solitude. Não deu certo! Acabei na mesma cafeteria das manhãs chuvosas onde me refugio com as duas crianças e que possui um parquinho coberto, cujas crianças com sua energia acumulada e seus pais exauridos vêm para um tempo de respiração. Talvez tenha sido uma escolha do meu inconsciente, já que minha mente e criatividade já foram adestradas para ambientes com tal atmosfera.
Não quis arriscar no pedido e já me arrependo. Me garanti no “minidesayuno” que vem com um pequeno café, um minicroissant e um zumito de naranja. Porém quando vejo chegar o pedido do senhor à minha frente, que desde que chegou me encara (de certo por conta da minha roupa descombinada ou da garota que vem sozinha a uma cafeteria barulhenta pra escrever), vejo que deveria ter optado pela surpresa. Na Espanha tem algo parecido com o Kinder ovo para adultos, você pede uma bebida e vem de brinde algo para comer. Pode ser uma torta, salgadinhos, jujubas ou no caso desse senhor, um bolo parecido com o de fubá do Brasil com gosto de saudades. Mas enfim, minha escolha já foi feita, e agora tenho que me contentar com o gosto de segurança que as moedas da carteira me proporcionaram.
Não resisti e pedi mais uma holandesa, uma grande bolacha com um açúcar de confeiteiro em cima que sempre divido pelas manhãs e que hoje poderei saborear sozinha. Acho que não será tão saborosa. Parece que quando dividimos tem mais sabor, talvez pelo fato de estarmos compartilhando com o outro, ou sendo mais sincera porque temos um pouco menos e queremos aproveitar cada pedaço. Não estamos enfastiados, como diz o provérbio quanto ao mel em grande quantidade que perde seu real sabor. Pausa para uma bocada. Metade da holandesa no prato. Vou pedir para embalar.
Enfim, deixa te contar como cheguei até aqui, mas antes quero voltar a quase um mês atrás onde tudo começou (acho que terei que visitar mais cafeterias para terminar a crônica). Espero que não se canse ao lê-la, te dou permissão para pausas de petiscadas, ainda mais se for mãe, leve o tempo que precisar.
Quero compartilhar algo que nos últimos quatro anos tem se tornado meu maior desafio: Preparar malas! Só de pronunciar as palavras começo a sentir calafrios e a suar. Desde nova fui ensinada pela minha mãe a preparar minha própria bagagem. Tinha uma bolsa de nylon vinho e já aos nove anos eu que a arrumava. Mas nada como ter o primeiro filho e fazer uma viagem ao exterior em um clima nunca experimentado como o inverno da Suíça, para elevar ao nível máximo de dificuldade, o jogo. Quatro grandes malas de 32 Kg cravados, um mochilão de 10 e três mochilas, quase tudo que a companhia aérea permitia. Não me julgue! Já fui punida o suficiente.
Depois de quatro anos estamos um pouco mais avançados na arte, a começar pelo fato que terminamos de arrumá-las na manhã anterior à viagem e não poucos minutos antes do embarque, com a possibilidade de um jantar a dois, proporcionado pelos avós que já sofriam com a falta. Dois filhos, quatro malas com menos de 23 kg, duas mochilas e uma mala de 10. Ainda não atingimos o patamar, mas não vamos desprezar os pequenos feitos.
Cortando meus devaneios, a fim de chegar ao assunto principal: O conteúdo da mala, talvez agora eu consiga fixar a mente no que importa, se é mesmo que estou certa do que seja.
Sabia dessa vez da estação que me aguardava e tentei não errar tanto. Desde a viagem para a Suíça, temos uma mala vinho onde preservamos roupas que com as estações do Brasil, dificilmente serão aproveitadas, mas que certamente estariam presentes em futuras bagagens. Ela fica guardada em meu ateliê também conhecido como antiga lavanderia, depósito ou quarto da bagunça (sobre esse assunto falamos em outra crônica). Estava garantida, afinal as roupas tinham sido adquiridas na própria Europa, não tinha erro nem de temperatura, nem de moda. Mas o que não esperava era o que viria a seguir, alguns imprevistos aconteceram durante a jornada.
Minha calça preta com tiras de couro na caneleira, própria para ocasiões especiais, sem o porquê havia rompido de forma grotesca na região dos glúteos. Minhas blusas de gola rolê e meu suéter preto para qualquer ocasião foram esquecidos no frio de Curitiba. E o que dizer dos sapatos. Tinha um tênis perfeito de cano longo, quente e estiloso. É de uso de boxeadoras, mas havia adquirido para um espetáculo de circo que fizemos para uma turnê também na Europa. Agora com certeza o usaria e me sentiria uma jovial Europeia. Mas em uma dada noite em uma comunidade, chamada festa da generosidade, onde sensibilizávamos nosso coração consumista, para viver o dar que é melhor do que receber, senti, pensei e confirmei que ele seria repassado para outra pessoa. Com o pesar de uma criança de quatro anos que voluntariamente dá seu super-homem de brinquedo e depois se arrepende (fato acontecido na mesma festa), entreguei o tênis, certa que seria da melhor forma suprida em minhas necessidades. Mas acredito que me esqueci de avisar para “Aquele” que falou sobre o dar que é melhor, o que seria o “melhor”. Talvez Ele tenha se esquecido que após as duas gravidezes, meu pé cresceu e agora não uso mais 36 e sim 37, e que 35 já me serviu na idade adulta, mas não ficava tão confortável. E também que gosto das botas de couro, bem úteis por sinal, no inverno europeu, mas a fivela dourada e a estampa de onça mesmo que muito discreta, apesar de lindas e presente na moda Europeia, não combinam com meu estilo, seja qual for ele. Talvez realmente tenha passado desapercebido, ou quem sabe Ele quis pregar alguma peça, ou sendo mais religiosa, me ensinar alguma coisa. Ao menos me restara uma blusa que com certeza não me permitiria passar frio. E um vestido grosso de linho para uma ocasião especial.
Logo na segunda semana na Espanha, tivemos uma festa de ações de graça, e lá se foi minha carta na manga. Havia guardado para a formatura que aconteceria, mas me disseram que deveríamos ir todos “muy guapos”, para a festa. Vocês não imaginam como tão poucas palavras me doeram. Meu cabelo caindo muito por conta do clima e da água, as olheiras aumentando, pois o bebê ainda não tinha entrado no fuso. E sem a escolinha para o mais velho, mal tinha tempo de tomar um banho, só imagina o estado da unha. A única coisa boa é que com o inverno não precisa se preocupar com a depilação.
Reuni toda a minha coragem, me esforçando em preservar o espírito da noite de graças e me vesti como que para uma apresentação. Era meu melhor figurino, e minha melhor maquiagem, era certo que ajudaria na atuação, apesar dos olhos vermelhos e inchados como que saídos de uma tragédia de Shakespeare. A estreia foi melhor do que eu planejara. Voltei para a casa um pouco mais leve sem nenhum recurso vestual para as demais festas de fim de ano que seguiriam.
ATO 2:
Passaram se alguns dias até essa manhã nublada. Sai de casa sozinha vendo bem se não estava esquecendo nada além do que ficara propositalmente: um carrinho com seu respectivo bebê, bolsa com mamadeira, fralda, lanchinho, papinha, troca de roupa, uma criança, guarda-chuva, capa de chuva, brinquedo, etc… Não! Estava tudo aqui: celular, água e carteira, mais algumas graves recomendações de economia do marido. Fui em direção à feira da praia, à procura de uma blusa mais quente e um gorro para o bebê. No caminho para a feira, que fica na orla em direção ao porto, fui lamentando e apontando todos os meus argumentos para Aquele que nem se lembrava mais do número do meu sapato, porque eu não merecia andar mais elegante. Porque precisava me esforçar para combinar meu jeans desbotado, com minha blusa europeia e uma bota com detalhes de onça. Sentia-me injustiçada e com certeza com a razão.
Passei pelo mesmo caminho de todos os dias, ao lado do lago com os patos, da lona de circo que estava sendo desmontada, do casal de velhinho sentado no banco de madeira olhando o mar transparente, cheio de algas e cardumes de peixes, das árvores com suas folhas de inverno avermelhadas formando um tapete na grama verde, das flores vermelhas dos arbustos que resistiam ao inverno rigoroso, das crianças com seus avós no parquinho. Das duas árvores peladas que de forma impressionante seus galhos se encontram como se estivessem dando as mãos em uma simbiose sobrenatural.
Inesperadamente parei, e junto a mim, parece que o vento e os ruídos também silenciaram. Era a voz dEle interrompendo minhas lamúrias, como uma brisa suave que penetra a ponto de dividir juntas e medulas, mente e alma, me fez uma proposta: “Você pode atravessar a rua rumo às vitrines, pode seguir reto pela feira, ou pode ir pela orla para ver como visto minha criação, porém a escolha é só sua”. Com a alma petrificada e gélida como a pele permaneci no calçadão da feira, não consegui ser tão ousada, não estava ainda preparada para ver sua nova coleção de inverno. Continuei o caminho, mas meus olhos já não estavam nas roupas penduradas de linho e suas promoções registradas em Euro. Passei reto sem gastar nenhum níquel de minha carteira, a não ser para comprar um caderno e uma caneta na papelaria do caminho.
Cheguei à cafeteria, tirei meu casaco comprado em Lisboa. Fiquei exposta com minha blusa roxa e meu jeans fleg surrado, tampando as fivelas douradas. A combinação já não me incomodava tanto, mesmo com o senhor que me analisava. Pedi meu minidesayuno e passei a escrever. Pensei que talvez o convite feito anos atrás, não era apenas para olhar os lírios e os pássaros, observar como são tão bem vestidos e que assim Ele também me vestiria mais bela que as esposas de Salomão. O apelo era pra olhar, simplesmente contemplar, tirar os olhos das vitrines ou modelos que me rodeavam, e observar as árvores nuas, mas coberta com a beleza da estação.
Hoje estou na cozinha de casa, não fui a nenhuma outra cafeteria. Não é um lugar com design rústico ou Vintage, mas precisava de um ambiente acolhedor, seguro, comum. Com um forro de pequenas e delicadas flores azuis, uma xícara de cappuccino e a metade de uma Holandesa que decidi dessa vez não compartilhar, não pela dor que dar às vezes gera, mas porque seu gosto não estava tão doce como das outras vezes. Tem sabor de correção, de vergonha, ingratidão, mas também é revestida com a graça de um açúcar delicadamente polvilhado. Certa que estarei ainda mais preparada para arrumar as próximas bagagens, e cada dia mais elas serão reduzidas, afinal o que mesmo levarei na última viagem?
Meu pedido hoje é apenas um café, quero aguardar para ser surpreendida com o acompanhamento.
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